Texto originalmente publicado em: FONSECA, André Azevedo da. As rapsódias da vida comum. In: KAPPEL, Irma Beatriz Araújo; CASTRO, Rodrigo Santos de. Resgate cultural: por entre os labirintos da memória. Uberaba: UFTM, 2008.
As histórias de vida das pessoas comuns dificilmente se enquadram no encadeamento metódico da narrativa convencional, pois o caráter intuitivo e improvisado dessas experiências se revela com mais expressividade através da escrita alvoroçada da rapsódia. As lembranças pessoais são, por natureza, compostas de meias verdades e autoenganos, fatos e expectativas, nostalgias e esperanças, simpatias e amarguras, de modo que, no imediatismo acidental da oralidade, essa trama de incoerências ziguezagueia-se no entrelaçamento impreciso de uma memória feita em retalhos. Contudo, uma tessitura indomável não se subordina a qualquer espécie de alfaiataria: apenas a rapsódia, portanto, parece capaz de oferecer as condições necessárias para costurá-la.
Mas de que espécie de rapsódia estamos falando? Na antiguidade, os rapsodos celebrizavam-se nas cidades gregas de acordo com o seu talento em recitar em público as fabulosas epopéias da época. A própria Odisséia, de Homero, é dividida em rapsódias. Modernamente, esse termo também se refere a uma modalidade livre de peça musical, repleta de melodias improvisadas e de efeitos instrumentais inspirados em tradições regionais. Muitos já argumentaram que Macunaíma, de Mário de Andrade, é uma verdadeira rapsódia na qual o anti-herói enfrenta monstros da mitologia indígena e passa por diversas outras peripécias na cidade. Desse modo, está claro que não estamos inventamos nada de propriamente novo ao propor a redação de relatos biográficos em forma de rapsódias de vida, pois todos aqueles que trabalham com memória social sabem que as pessoas tendem naturalmente a contar a sua peripécia por meio de uma perspectiva trágica, épica ou mesmo mística, e jamais deixam de construir relatos repletos de coloridos regionalistas e de toda sorte de improvisos tipicamente rapsódicos.
Historiadores, jornalistas e psicanalistas sabem – ou deveriam saber – que a lógica particular que as pessoas organizam para interpretar o mundo é instável e subjetiva. Os sujeitos mentem para si mesmos, supervalorizam insignificâncias afetivas, ocultam inconveniências embaraçosas, acusam e culpam injustamente os desafetos e acobertam e anistiam cordialmente os amigos. Em geral, as pessoas não conseguem resistir à tentação e, excitadas pelo interesse do pesquisador, tendem a narrar a própria vida como uma odisséia repleta de aventuras fabulosas. Além disso, quando concedem entrevistas, é comum que elas mintam para agradar ou para corresponder ao que imaginam que o pesquisador quer ouvir. Nem sempre essa dinâmica se dá por má-fé, mas simplesmente porque é assim que os atores sociais se comportam. No entanto, a consequência é que todos os relatos se tornam necessariamente duvidáveis. Por isso, é necessário que o pesquisador de tradições orais esteja precavido contra aquilo que Michael Hall chamou de “riscos da inocência”.
Assim, se as peças do quebra-cabeça da memória são anárquicas, carnavalescas e, em vez de se encaixarem, tropeçam umas nas outras, o registro de toda essa instabilidade exige uma rapsódia, uma estética equilibrista, uma metodologia do forrobodó e um deus-nos-acuda epistemológico. Por isso, o pesquisador literário da memória precisa assumir para si mesmo e para os seus leitores que o texto final não passa de uma espécie de farsa que só funciona sob a conivência de todos os envolvidos: personagem, narrador e leitor. Ou seja, é preciso ficar claro que esses registros da memória não pretendem retratar a “realidade”. O valor do exercício literário, que poderíamos chamar de ficção memorialística, não se encontra no valor histórico do relato em si, mas na própria engenhosidade narrativa que o personagem e depois o autor lançam mão para recuperar a humanidade da história e tornar o relato verossímil.
Pois bem. Assumindo, então, que tudo não passa de uma ficção memorialística, quais são os cuidados que esse pesquisador precisa assumir para efetuar um trabalho interessante? Em primeiro lugar, para contar a rapsódia de vida das pessoas comuns, o autor deve empreender um esforço especial para fingir autenticidade de linguagem de modo convincente. Ou seja, o jogo é brincar de se esconder pela fala e pelo raciocínio do entrevistado. Para isso, é preciso, antes de tudo, desenvolver o gosto e a disposição para dialogar com a linguagem e com a inteligência do outro. Não vale arrogância nesse jogo. Mesmo se o pesquisador titulado se considera uma espécie superior de ser humano, para alcançar seus objetivos, ele deve se esforçar para, no momento do diálogo, equiparar-se ao entrevistado e acompanhá-lo com interesse pelas esquinas de suas memórias equívocas e pelos labirintos de seus raciocínios não-acadêmicos. O texto final, contudo, deve se apresentar como um produto híbrido – nem popular, nem acadêmico, nem demagógico, mas um texto-diálogo que respeita o outro e se dá ao respeito. Ou seja, uma estética equilibrista para um investigador consciente de seu papel de rapsodo.
Cremilda Medina, teórica da área da Comunicação Social, argumenta que a entrevista alcança o ponto máximo quando se torna um verdadeiro diálogo. Ou seja, o encontro do repórter com a sua fonte não deve ser um momento de mera captação de informações, mas de confluência de inteligências, de modo que a síntese entre os dois interlocutores transforme a visão de ambos. Como em uma maiêutica socrática, a pergunta deve fazer com que o entrevistado desenvolva um raciocínio inédito, surpreenda-se com as suas próprias conclusões e, consequentemente, inspire novas perspectivas ao jornalista. Com essa perspectiva é possível construir propostas como a reportagensaio, um modelo experimental de relatos de não-ficção que, como propõe Vargas, busca uma compreensão mais sutil a partir de descrições criativas das conversas cotidianas.
De outro lado, é comum observarmos repórteres que fazem entrevistas apenas para confirmar os pontos que já sabiam de antemão. Ou seja, nessa prática inadequada, é como se a reportagem já saísse pronta da redação: o papel do jornalista parece se restringir a preencher o formulário com uma declaração de um sujeito qualquer, disposto a confirmar a versão preconcebida. Desse modo, e trazendo a discussão para uma dimensão transdisciplinar, não é incomum que pesquisadores se irritem quando o que escutam simplesmente contraria o que esperavam ouvir. A proposta de entrevista-dialógica contesta essa prática e defende a idéia de que apenas o respeito mútuo e o espírito de abertura do entrevistador podem contribuir para o avanço da compreensão de mundo. Dizendo de outro modo, o investigador precisa estar disposto ao imprevisto e não deve cair na armadilha de só dar valor àquilo que confirma as suas próprias pressuposições.
A afeição linguística recíproca é condição fundamental para o estabelecimento do diálogo. O acadêmico não deve empolar a linguagem para abordar o entrevistado e nem precisa macaquear o léxico ou os trejeitos populares para ser simpático. O entrevistado, por sua vez, não pode ser levado a uma ilusão de estrelato ou, ao contrário, a um temor reverencial em relação à imagem do pesquisador. É frustrante se deparar com narrativas cheias de boa-vontade que, no fim das contas, simplesmente anulam a fala das pessoas. Ou seja, no empenho em redigir um texto limpo, o acadêmico joga fora as “impurezas” do texto e, assim, abre mão de toda a riqueza ecológica do universo linguístico do entrevistado. Por outro lado, são embaraçosos os textos que, a pretexto de papaguear a fala do outro, tornam-se simplesmente mal-escritos ao reproduzir estereótipos e atuar com displicência na transcriação da linguagem oral. Dizendo de modo quase grosseiro: há pesquisadores que, na melhor das intenções e em nome da defesa das variações linguísticas, acreditam que a linguagem do povo deve ser estigmatizada no texto escrito. Desse modo, se um ilustre e um anônimo carregam um sotaque interiorano, a fala do ilustre será grafada de acordo com a norma culta e a do anônimo será submetida às corruptelas ortográficas. Ou seja, “você” para o ilustre e “ocê” para o anônimo, “está bom” para o doutor e “tá bão” para o empregado, mesmo que ambos digam /osê/ e /tá bãw/. Isso não é afeição, mas um empreendimento de distinção.
Em segundo lugar, o pesquisador não deve cair na armadilha de alimentar sentimentos de piedade em relação aos personagens que retrata. A compaixão é um ingrediente muito adequado para a escritura de súplicas e orações aos necessitados, mas em uma rapsódia acadêmica sobre a memória dos anônimos essa virtude tende a anular a inteligência das pessoas ao transformá-las em criaturas semi-humanas, vítimas de uma maldade abstrata e reféns da benevolência dos bem-aventurados. Em nome da caridade, os miseráveis e indigentes são tratados como animais de estimação, como seres irracionais que divertem o dono ao lamber a mão em troca de um osso. É preciso ter em conta que, por mais que não pareça aos olhos de um inocente e higiênico universitário, até mesmo o mais inominado indigente é um sujeito histórico que possui sua própria racionalidade, que desenvolve estratégias de sobrevivência, que articula explicações originais para o mundo, que consegue rir do ridículo das coisas e que tem todas as condições de se tornar um interlocutor interessante. Os desaventurados podem ser uns cretinos, da mesma forma que outros crápulas alcançam a prosperidade. Seres humanos são incoerentes. A vida é incoerente. Não podemos ser maniqueístas ao querer buscar apenas heróis e vilões ou santos e demônios purossangues em nossas histórias.
Mas é necessário que os princípios éticos fiquem bem claros para que os cínicos não tenham oportunidade de nos interpretar mal. Ao mesmo tempo em que é urgente combater a ordem social injusta e violenta que fomenta e (ao mesmo tempo retirar por já existir na linha acima) criminaliza simultaneamente os miseráveis, é imprescindível recuperar a humanidade dos anônimos em todas as suas dimensões. Para isso, é preciso driblar as reservas formais do politicamente correto para dialogar com as pessoas com aquela intimidade permissiva e fraterna de dois irmãos em suas diatribes afetivas. Na sua relação com o entrevistado, o pesquisador literário da memória deve estimular, dialeticamente, a autoestima e a autocrítica de ambos os interlocutores, pois, em geral, as pessoas não se ofendem quando a chacota já está incorporada na boa imagem que elas têm de si mesmo. É preciso frisar que essas duas virtudes devem estar presentes também no espírito do próprio pesquisador, que não deve ter medo de expor as suas dúvidas e de discutir no texto as contradições de seu raciocínio. Essa honestidade intelectual humaniza o relato ao carnavalizar a pretensão de seriedade dos imaturos. Eis a metodologia macunaímica do forrobodó.
Além disso, não é por caridade ou por condescendência que devemos nos empenhar para efetuar o registro das memórias sociais. Contar a história do povo não é esmola, não é um mero passatempo altruísta e também não é farisaísmo. O que motiva os pesquisadores interessados nas histórias da vida comum é a constatação de que as narrativas dos personagens anônimos em sua luta diária pela sobrevivência fornecem subsídios imprescindíveis para a ampliação da nossa capacidade de interpretar e explicar o mundo. Quando a armadilha da arrogância acadêmica nos leva a desprezar as representações, as experiências e os imaginários que circulam às margens da sociedade, desperdiçamos a oportunidade de nos iluminarmos com a criatividade intuitiva que as pessoas lançam mão para esculhambar as dificuldades da vida. Mais uma vez, deixemos claro: nem demagogia, nem idealização juvenil, mas abertura de espírito para as possibilidades da imaginação.
E uma vez mais, essa atitude da academia perante as memórias coletivas não é cínica, pois está imbuída de um propósito ético. Em poucas palavras: no exato momento em que escolhemos contar a história dos anônimos, negamo-nos a celebrar a memória dos ilustres. A opção pelos esquecidos é consciente. Por isso, a pesquisa sobre a vida das pessoas comuns é uma atitude política. O objetivo explícito é generalizar a percepção de que todos são sujeitos históricos, que todos têm a ensinar e a contribuir na interpretação e na reinvenção do mundo, que todos devem intervir criativamente na construção social da realidade, e não apenas os políticos, os empresários, os intelectuais, os artistas e outros personagens ilustres. As pessoas não devem permanecer reféns de seus líderes. A vida cotidiana deve ser descrita e estudada para que as pessoas se sintam importantes, melhorem a sua auto-estima e conquistem a disposição permanente de se inventar e de recriar o seu mundo.
Por fim, é preciso discernir uma coisa da outra coisa. A memória é uma espécie de morto-vivo que transformamos em marionete por meio da articulação dos pedaços de lembranças que resgatamos do sepulcro do passado. De certo modo, recosturar as lembranças dos outros em uma narrativa é como dar à luz a um monstro de Frankenstein. É ingenuidade acreditar que a história escrita pelo pesquisador corresponde à vida real do entrevistado; pois, na verdade, os depoimentos que desenterramos não passam de pedaços deteriorados de osso e carne, não são mais do que a matéria-prima que ajuntamos a gosto para dar vida ao nosso próprio monstro de estimação. Em uma palavra, a memória é do outro, mas o texto é autoral.
É preciso ficar claro também que o pesquisador literário da memória não é um historiador-amador. A propósito, Ambrose Bierce escreveu a melhor definição que já li sobre o amador: “Um transtorno público que não conhece a diferença entre gosto e habilidade, e confunde a sua ambição com a sua capacidade”. Insistamos: quando empreende um trabalho sobre memória, o pesquisador de Letras ou de Terapia Ocupacional não faz história oral. A História tem as suas próprias teorias, métodos e críticas internas, de modo que os historiadores estão sempre prontos a ridicularizar – com razão – aquele amadorismo desastroso dos diletantes. Contudo, o registro das narrativas da memória não é monopólio dos historiadores. Esses pesquisadores têm o seu modus operandi, mas é claro que isso não é tudo. O acadêmico de Letras, por exemplo, tem interesse em investigar as estratégias que as pessoas lançam mão para criar histórias vivas, humanas e convincentes. Literaturas fabulosas que circulavam na cultura oral já se perderam por falta de bons estudos. Ora, ninguém pode impedir esse pesquisador de investigar os processos literários que estruturam as lembranças coletivas.
No caso de acadêmicos em Terapia Ocupacional, que vez ou outra se aventuram na arte da contação de histórias, o que interessa são os efeitos ao bem-estar que a rememoração, o registro e a difusão de lembranças pessoais e coletivas podem proporcionar aos entrevistados e às suas famílias. Esse pesquisador registra a memória do outro para estimular o entusiasmo de viver, para incentivar a auto-estima de quem conta e valorizar a experiência de toda a comunidade que compartilha o mesmo universo de valores e referências.
Por tudo isso, propomos a execução de rapsódias de vida para capturarmos a espontaneidade macunaímica das lembranças de pessoas não-ilustres. A rapsódia vai e volta, não se acorrenta na visão unilateral e possibilita ao autor o registro de um diálogo fecundo com o outro. A rapsódia não se enquadra nem mesmo na perspectiva interdisciplinar, pois sua fertilidade esfuziante favorece a semeadura de uma verdadeira ecologia de saberes não-disciplinares. Além disso, como já argumentamos em um trabalho, a pesquisa das memórias coletivas precisa superar a perspectiva analítica e racional para aprender a dialogar com o mundo por meio de olhares afetivos, carinhosos e amorosos, capazes de, entre piscadelas cúmplices, tecer um texto vivo e caloroso que não tem medo de se emaranhar nas teias dos contatos humanos.
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Referência bibliográfica:
FONSECA, André Azevedo da. As rapsódias da vida comum. In: KAPPEL, Irma Beatriz Araújo; CASTRO, Rodrigo Santos de. Resgate cultural: por entre os labirintos da memória. Uberaba: UFTM, 2008.
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